“Torto Arado” exalta tradições da Chapada Diamantina para o mundo

Traduzida em mais de 20 países, a obra de Itamar Vieira Júnior mergulha em paisagens.
Em "Torto Arado", por meio da história de Bibiana e Belonísia, a Chapada Diamantina é apresentada em suas várias facetas.

Traduzida em mais de 20 países, a obra de Itamar Vieira Júnior mergulha em paisagens, costumes e acontecimentos da região turística localizada no centro da Bahia

Em “Torto Arado”, por meio da história de Bibiana e Belonísia, a Chapada Diamantina é apresentada em suas várias facetas.

Duas crianças se aproveitam da distração da avó para descobrirem o segredo que ela esconde no quarto há anos. Sorrateiramente, as irmãs puxam a velha e empoeirada mala de couro de baixo da cama e retiram o misterioso objeto guardado em seu interior: uma faca reluzente com cabo de marfim. O fascínio pelo artefato é tamanho que as imprudentes meninas o colocam na boca para sentirem o sabor do material desconhecido. Em instantes, a irreversível tragédia se consuma. Uma das garotas fere profundamente a língua enquanto a outra tem destino ainda pior: sem querer, decepa o membro e fica muda para sempre.

É a partir desse triste episódio que se desenrola a trama de Torto Arado, romance premiado escrito pelo baiano Itamar Vieira Júnior. Durante toda a vida, Bibiana e Belonísia estarão ligadas pelo acidente, pois a primeira servirá de voz para a segunda. Moradoras da fictícia Fazenda Água Negra, as protagonistas têm seus caminhos, seus conflitos e seus desejos marcados pela lâmina traiçoeira e pelo grande (e real) cenário da narrativa — a Chapada Diamantina. À medida que crescem, apaixonam-se e sofrem, as personagens envolvem o leitor com o resgate de lugares, costumes e tradições do coração da Bahia.

O jarê

Zeca Chapéu Grande, o pai de Bibiana e Belonísia, assume igualmente a paternidade espiritual da comunidade. Desde a infância, ele esteve predestinado a ser um curador do jarê, isto é, um sacerdote. Essa religião é exclusiva da Chapada Diamantina e se originou da mistura de credos nagôs, católicos, espíritas e candomblecistas, além de crenças indígenas e elementos do garimpo. Diferente dos cultos afro-brasileiros praticados na capital e em outros estados do país, o jarê tem sua própria cosmogonia, ritualística e panteão de entidades. Até mesmo a batida e a confecção dos atabaques usados nas cerimônias (geralmente chamados de “couros”) são personalizadas. Entretanto, de modo similar às outras manifestações de matrizes africanas, o jarê preserva imagens de santos católicos e orixás ao mesmo tempo bem como celebra dias sagrados e pratica a incorporação de espíritos. Situações que expressam a mediunidade e o contato com os “encantados” são, aliás, muito recorrentes em Torto Arado — e fundamentais para o desfecho da trama.

O garimpo

Com grande projeção desde o século 19, o garimpo faz parte da história da Chapada Diamantina e gerou diversas lendas, conflitos e tradições. Resgatadas nas páginas de Torto Arado, as atividades mineradoras são apresentadas, sobretudo, em seus desdobramentos mágicos e alucinantes. Bibiana, por exemplo, narra que muitos garimpeiros chegavam confusos à casa de Zeca Chapéu Grande: já não sabiam mais se eram gente ou uma fera perdida na mata. E toda essa confusão mental se dava por causa da busca desenfreada por diamantes, que dominou a região durante décadas. Segundo a narradora, o fascínio pelas pedras preciosas era tanto que muitos dormiam e acordavam pensando em encontrá-las. E, quando finalmente as achavam no meio dos cascalhos, já não podiam adormecer para não terem o tesouro roubado. Além disso, permaneciam com os minérios sempre próximos ao corpo, não tomavam mais banho de rio e ficavam atentos a qualquer movimento para evitar trapaças. A luta pelo diamante virava, assim, em todas as etapas, uma obsessão que levava o indivíduo à vertigem.

As paisagens

 “Água Negra”, que nomeia a fictícia propriedade rural onde vivem as personagens, remete aos poços escuros da Chapada Diamantina, como o Rio Preto, no Capão. Devido à grande concentração de matéria orgânica, as águas da região, em muitos atrativos, têm coloração intensa e enegrecida. Cidades e povoados reais, como Andaraí e Remanso (em Lençóis), são ainda mencionados na obra. Itaberaba também aparece na narrativa. É numa fazenda localizada nas adjacências desse município que Bibiana e o marido, Severo, vão trabalhar quando se mudam de Água Negra. De acordo com as narradoras, flores como as sempre-vivas (comuns principalmente nas paisagens de Mucugê) eram colhidas para adornar os altares presentes nas casas.  

Iguarias

Torto Arado abre alas para a culinária da Chapada Diamantina. Além de mencionar o consumo de chás, infusões e frutos como o araçá, a trama também apresenta sequências em que os personagens se alimentam de palma, andu, feijão-verde e farinha de mandioca. Quando os anos de seca desabam sobre Água Negra, Belonísia nos conta, por exemplo, que sua família passou a disputar a palma com o gado para poder sobreviverem. Hoje, mesmo sem seca e fora da ficção, a palma (ou figo-da-índia) está presente nas mesas de lares e restaurantes da região. Com alto teor de fibras e vitamina A, o vegetal é apreciado em picadinhos refogados para o almoço.

Inácio

Quem conhece a Chapada Diamantina sabe que a sua lenda mais famosa e o seu cartão-postal mais conhecido atendem pelo nome de Pai Inácio. De acordo com poetas, guias e nativos, um escravo se apaixonou pela filha de um coronel e, para fugir da perseguição do sogro, atirou-se do topo do morro que, desde então, ganhou o seu nome. Em Torto Arado, o filho mais velho de Bibiana é batizado na igreja do Senhor dos Passos com o mesmo nome do personagem mítico. Curiosamente, quando cresce, o rapaz também se torna um indivíduo destemido. Mas, em vez de usar um guarda-chuva para se proteger, o jovem pretende se tornar herói de seu povo por meio do conhecimento. Por isso, sai de casa para estudar e conquistar um diploma.

Talhada em meio a uma linguagem sensível, poética e sublime, a história de Torto Arado evoca a sororidade (o companheirismo entre as mulheres), a luta pela terra e o resgate de tradições da Chapada. Por meio de cenas de injustiça, dor e preconceito, o texto de Itamar Vieira Júnior — tal como uma faca afiada — corta o coração dos leitores em muitos momentos. Mas no fim, nas últimas páginas, faz ressoar a voz encantada que todos os amantes e admiradores da Chapada reconhecem. E é como se essa voz dissesse: “Não se espante. Nesse território mágico, tudo pode acontecer”.

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